O X da Questão: Análise sobre a performance “Chuva de Dinheiro” (1983) de Márcia X
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- 24 de jun.
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Marcia [X] Pinheiro e Ana Cavalcanti em “Chuva de Dinheiro”, 1983.
O X da Questão: Análise sobre a performance “Chuva de Dinheiro” (1983) de Márcia X
Luíza da Nóbrega de Alvarenga
Bacharel em História da Arte (Uerj)
Não acho que o público saiba ou tenha necessariamente que saber o que é performance. O importante é ter contato com a obra. O problema é a incompreensão que existe dentro do meio das artes plásticas, o enorme descrédito que existe no Brasil em relação à performance e também à arte política, minorias etc. (Marcia X apud Lemos, 2013. p. 25).
A poética visual de Márcia X (1959-2005, RJ), ao longo de seus 25 anos de carreira no Rio de Janeiro (1980-2005), atravessa diversos temas: tabus, feminismo, sexualidade, religião, sistema artístico e sociedade. Sempre ao estilo kitsch, sua produção é escandalosa, polêmica e política. Afinal, a arte é sempre um reflexo de seu tempo e, se provoca incômodo, é porque está cumprindo sua função.
Para compreender a trajetória de Márcia X, é necessário voltar aos primórdios da performance no Brasil, na década de 1970. Sob o sufocamento da ditadura militar e diante de uma crescente globalização, desenvolvia-se uma antiarte, uma produção contrária ao mercado. Naquele período, a arte vivenciava uma fase experimental, marcada pela desmaterialização e pelo conceitualismo. Isso se manifesta tanto no uso de materiais perecíveis ou descartáveis, como o lixo, presente na obra de Arthur Barrio e Celeida Tostes, quanto nas performances que passaram a utilizar, ainda que de forma incipiente e restrita pelo alto custo, o registro em vídeo, como nos trabalhos de Sonia Andrade e Letícia Parente. Também são exemplos desse contexto ações como a “Apocalipopótese”, organizada por Hélio Oiticica, com a participação de outros artistas e espectadores; ou ainda a intervenção “De zero às 24 horas nas bancas de jornais”, organizada semiclandestinamente por Antônio Manuel, na gráfica do jornal O Dia (Rio de Janeiro), após a censura à sua exposição no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro (MAM-RJ).
Esse panorama é fundamental para compreender a influência dessas produções sobre a fase inicial da obra de Márcia X, que seguiu na contramão de seus conterrâneos na década de 1980, quando a maioria dos artistas brasileiros retornava à pintura, apoiando-se na ideia de uma antropofagia do passado, característica marcante da chamada “Geração 80”. Naquele momento, a performance, diretamente ligada à arte conceitual dos anos 1970, estava em declínio do ponto de vista mercadológico, em uma época que os artistas começavam a fazer as pazes com o mercado, abrindo-se a ele. Esses jovens pintores alinhavam-se a uma tendência internacional, evidente no sucesso da bad painting americana, do neoexpressionismo alemão e da transvanguarda italiana.
Márcia, contudo, insistia na performance, propondo uma redescoberta dessa linguagem e trazendo um novo desdobramento para essa expressão (Frey, 2013, p. 20). Márcia X e seus contemporâneos performáticos adotaram uma estratégia antropofágica em suas produções artísticas. Isso fica bem evidente na obra “Cozinhar-te” (1980), uma provocadora brincadeira de “cozinhar a arte”.
cozinhar-te, uma proposta de vivência/instalação de uma cozinha viva no espaço do salão, onde se passava as tardes cozinhando o comendo “a transferência da cozinha de nossa casa, onde se preparavam comidas – ideias – fomes – espaço comunitário, afetivo (Marcia X apud Lemos, 2013, p. 319).
Chuva de Dinheiro (1983)
Do último andar do edifício do Amarelinho, na Praça da Cinelândia (Praça Floriano, Rio de Janeiro-RJ), Ana Cavalcanti e Márcia X (ainda utilizando o sobrenome Pinheiro na época) lançaram enormes cédulas de Cr$ 5, impressas em serigrafia, frente e verso, medindo 80 x 180 cm. Em uma matéria publicada no Jornal do Brasil em 15 de março de 1985 sobre a performance, leia-se:
Na praça, muita gente correu e se empurrou para conseguir uma nota. Uma senhora perguntava se era "a mãe do Maluf” quem estava jogando dinheiro para o povo. Um homem de terno disse que "esse negócio de cruzeiro caindo já não é mais novidade." E um rapaz de camiseta assustou os fregueses do bar Amarelinho ao gritar: "Sai de baixo que agora vem moeda” (Jornal do Brasil, 1985 apud Lemos, 2013, p. 34).
Em “Chuva de Dinheiro”, a crítica se volta, sobretudo, à inflação da época, que ultrapassava os 1000% ao ano, e também ao salário mínimo, que, dia após dia, perdia valor real. Além disso, a nota escolhida tinha valor extremamente baixo, como enfatizaram as artistas:
— Vamos organizar chuvas de dinheiro no Brasil inteiro e, finalmente, faremos uma grande tempestade, em Nova Iorque, para pagar a nossa dívida externa (Jornal do Brasil, 1985 apud Lemos, 2013, p. 34).
Essa é uma das primeiras ações de Márcia X, e considero-a especialmente importante para compreender sua atuação sociopolítica. É possível interpretá-la como uma crítica ao mercado artístico da época, que girava praticamente apenas em torno dos artistas que se voltavam à pintura. Vestidas com estampas das notas de cinco cruzeiros e tendo inserido seus nomes nas cédulas – Ana como Diretora da Caixa de Amortização e Márcia como Ministra da Fazenda –, a ação também aponta para a pouca valorização da performance e da arte conceitual naquele período. O ato de distribuir gratuitamente serigrafias transgrediu os mecanismos tradicionais de circulação do circuito artístico, que dependia da institucionalização para validação das obras no meio (Basbaum, 2003, p. 54).
Ricardo Basbaum (1961) e Aimberê Cesar (1958-2016) destacam a ausência de registro e de retorno crítico aos experimentos dos performadores, em contraste com a atenção conferida aos pintores da época. Segundo Basbaum, a performance não era comentada nem pensada pelos críticos, e, conforme Cesar, os artistas de performance não se tornaram referência porque não eram reconhecidos como praticantes de uma linguagem artística legítima naquele contexto. Houve, portanto, um vazio perceptível: uma falta de correspondência entre os trabalhos e o circuito artístico, evidenciando a necessidade de produzir obras pictóricas ou escultóricas para obter reconhecimento na Geração 80.
Essa breve análise buscou oferecer um olhar tendente e atual sobre a época, explorando “as colas” sobre a cena artística dos anos 1980, destacando-se a discrepância entre a interpretação contemporânea e a perspectiva daquele tempo, à luz dos desdobramentos e do distanciamento histórico que sempre influenciam novas leituras. Especialmente no que diz respeito à compreensão e à aceitação da performance como uma forma legítima de expressão artística, bem como ao conhecimento do fazer artístico e do pensamento crítico de Márcia X ao longo de sua trajetória. Partindo do princípio de que o distanciamento temporal permite novas avaliações sobre o passado, torna-se possível atribuir novos significados e conclusões. No entanto, isso se revela particularmente difícil em relação à obra de Márcia X, cuja produção mais suscita novas indagações do que oferece respostas.
A performance “Chuva de Dinheiro” (1983) está situada entre a agonia da inflação descontrolada e a ansiedade provocada pela iminente redemocratização do país. Realizada no coração das atividades mercadológicas da cidade do Rio, entre instituições financeiras, casas de câmbio, agências bancárias, restaurantes de alto padrão, pequenos bares, comércios familiares, filiais de grandes marcas e vendedores de calçada, a escolha da Cinelândia, à época um importante polo cinematográfico, parece ter sido ambiciosa. Afinal, o local é historicamente marcado por atos políticos, comícios, manifestações, expressão teatral e arte cinematográfica.
Quanto ao X da questão de suas performances, acredito que são provocações lançadas ao público, que é, simultaneamente, alvo e parte integrante do acontecimento. Márcia X se recusava a ignorar o entorno, sempre transpassado por suas intervenções manifestantes, numa dinâmica de ação e reação.
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Texto escrito por Luiza da Nóbrega de Alvarenga para a disciplina “Laboratório de História, Crítica e Teoria da Arte”, ministrada pelo professor Alexandre Ragazzi, enquanto graduanda no Instituto de Artes da UERJ, em 7 de dezembro de 2023.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BASBAUM, Ricardo. Pintura dos anos 80: algumas observações críticas. Gávea (Rio de Janeiro) Brasilil, vol. 6, no. 6 (1988): 39- 57.
BASBAUM, Ricardo. “X” Percursos de alguém além de equações. Revista Concinnitas, [S. l.], v. 1, n. 4, p. 174–197, 2019. Disponível em: https://www.e-publicacoes.uerj.br/concinnitas/article/view/42762.
BULHÕES, Maria Amelia. A Geração 80 no Brasil, uma ousada e complexa expansão. Revista ArteTeoria, Série II, n. 21, 2018. Disponível em: http://hdl.handle.net/10451/48767.
FREY, Thales. Discursos Críticos Através da Poética Visual de Márcia X. 2. ed. rev. [S. l.]: Paco Editorial, 2013.
LEMOS, Beatriz (Org.). Marcia X. Trad. Thaís Medeiros e Mark Phillipp. Rio de Janeiro: Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, 2013. Disponível em: https://mam.rio/publicacoes/marcia-x-2/.
TINOCO, Bianca Andrade. Performance e geração 80: resgates. 2009. 294 f., il. Dissertação (Mestrado em Artes)-Universidade de Brasília, Brasília, 2009. Disponível em: http://repositorio.unb.br/handle/10482/7272.
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