Au revoir, intervenção em monumento público em Paris
- blogppghauerj
- 11 de set.
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Atualizado: 17 de set.

Frame do trabalho Au revoir, Joseph Gallieni retirado do site do artista
Au revoir, Joseph Gallieni é um vídeo de 2021 do artista Iván Argote que consiste em uma intervenção no monumento público que homenageia a figura histórica francesa, Joseph Gallieni, localizado em uma das avenidas centrais da cidade de Paris. É comum vermos monumentos nos centros urbanos em pontos centrais de grandes cidades representando figuras históricas, personagens ou eventos da história da região, sendo algo que se tornou parte da paisagem urbana. O trabalho de Argote como um todo se debruça sobre esses tipos de objetos, sendo a proposta dessa obra específica bastante radical: retirar a estátua do seu pedestal.
Iván Argote é um artista colombiano que atualmente vive na França, onde estudou na Escola Superior de Belas-Artes de Paris (École Nationale Supérieure des Beaux-Arts de Paris) e em 2022 foi um dos indicados ao Prêmio Marcel Duchamp, importante prêmio dedicado a jovens artistas inovadores que moram na França. Ele é um imigrante dentre vários outros que moram no país, representando 10,3% da população total da França (INSEE, 2022).

Print da pagina do trabalho Au revoir, Joseph Gallieni retirado do site do artista
Seu trabalho Au revoir, Joseph Gallieni está registrado em seu site pessoal, em que podem ser vistas três fotos. Duas delas mostram a estátua da figura histórica sendo erguida por cordas com a Torre Eiffel ao fundo. A outra é uma montagem do trabalho em um espaço expositivo, na qual observamos que o público pode se sentar sobre confortáveis obeliscos e pedestais estofados para assistir o vídeo.
Uma mudança interessante depois de uma recente atualização do seu site foi a retirada do vídeo em si da página do trabalho, deixando quem visita o seu site indagando sobre como ocorreu o fato. Infelizmente, isso também deixa aqueles que estão distantes de suas exposições e não tem fácil acesso ao vídeo confusos, mas também curiosos. Apesar disso, ainda é possível encontrar o vídeo completo em sua conta do Vimeo de forma gratuita, apesar de não ser um caminho tão obvio para se encontrar.
Sobre o próprio monumento que sofre a intervenção do artista, de acordo com o projeto À Nos Grand Hommes realizado pelo Musée d'Orsay e France Debuisson no qual catalogou monumentos públicos franceses, sabe-se que a estátua foi feita por Jean Boucher e inaugurada em 1926, é de bronze e tem 2,50 metros de altura, além disso ela está colocada em cima de um pedestal que retrata quatro mulheres erguendo a estátua de Joseph Gallieni. Essas mulheres são de diferentes etnias e estão ali para representar Paris, Madagascar, Toukin e Sudão, visto que foram as regiões que Joseph Gallieni administrou durante sua vida. Gallieni ganhou sua notoriedade por defender a cidade de Paris na Primeira Guerra Mundial e por "pacificar" essas outras regiões estrangeiras, colônias da França na época, representadas no pedestal. Essa “pacificação” envolvia a escravidão, tortura e exploração dos povos colonizados pela França. Com sua experiência nessas regiões, ele escreve o livro "Politique des races" no qual descreve um método de dominação politico-militar de um território afim de coloniza-lo utilizando-se de estudos antropológicos. Citando as palavras do próprio artista em seu instagram sobre a estátua: "A mensagem é clara, um poderoso e orgulhoso homem militar, andando por cima de mulheres, por cima das colônias, por cima dos continentes e por cima dos outros.” (Argote, 2022, tradução minha).
É esse personagem que representa a colonização de diferentes povos e é sua representação feita de forma conivente e reverenciando essas ações que Iván Argote pretende retirar do espaço público. Em seu vídeo acompanhamos a retirada da estátua de bronze do colonizador por um guindaste sem nenhuma consulta aos cidadãos ou qualquer instituição, admitido pelo próprio artista no vídeo. A ação foi acompanhada por falas do artista e de Françoise Vergès, cientista política e ativista, informando a audiência sobre a figura representada e seu papel na história francesa.
Em uma segunda parte do vídeo, o artista mostra a reação de internautas na plataforma Twitter, agora chamado de X, sobre o ocorrido após ser compartilhado pelo canal de notícias francês, "Regards”. Alguns desses comentários, mostrados entre 06’22’’ a 07’09’’ do vídeo, foram compilados e traduzidos por mim abaixo.
“Por que? O que ele fez?” Comentário do usuário Calais Pierre-Yves.
Repetidos emojis de comemoração Comentário do usuário Namastaywoke.
“É um começo, estamos aguardando o dinheiro que devem ao Haiti” Comentário do usuário Duke of Dolval.
“Cultura de cancelamento em ação em Paris. Aterrorizante.” Comentário do usuário Radio Londres.
Com a notícia se espalhando nas redes sociais foram acionados agentes públicos para averiguar a situação e foi constatado que a estátua permanecia no mesmo local de sempre. A partir desse momento do vídeo, Argote revela o que aconteceu de verdade: a obra nunca saiu do pedestal. A retirada foi apenas encenada com ajuda de edição de vídeo para criar uma "fake news", uma imagem falsa, sobre a retirada da estátua. Para o artista, produzir essa imagem falsa, retirando simbolicamente a estátua de Joseph Gallieni, é uma forma para que se possa realmente imaginar essa realidade em que a estátua poderia ser retirada de verdade. Outra realidade no qual podemos participar ativamente da construção da cidade em que vivemos.

(ORANGE, 0’22’’, 2020)
Essa não foi a primeira vez que essa mesma estátua foi alvo de intervenções. Já em 1927, um ano depois da sua inauguração, ela é “vandalizada por pacifistas”, registrado pelo projeto À Nos Grand Hommes. No ano de 2020, o monumento sofreu novas intervenções como forma de protesto contra a imagem de Gallieni. Entre algumas dessas intervenções vemos que o pedestal foi pichado com as frases “Estado responsável” e “em um museu” por manifestantes e em outro momento cobriram a estátua com um grande pano preto. Essas ações, incluindo a de Iván Argote, aconteceram temporalmente próximas de outras movimentações iconoclastas anticoloniais que eclodiram inicialmente nos Estados Unidos como revolta pelo assassinato de George Floyd. São manifestações críticas à visão colonial europeia que perpassa a formulação da nossa história que tende a desumanizar o “outro” e questionam como nossas cidades são construídas ao redor dessas personalidades ligados a passados coloniais violentos.
Um questionamento emergiu em diversos países com um passado comum de colonização e de grandes monumentos sobre o que fazer com esses monumentos que celebram a colonização. Essa pergunta já foi feita anteriormente há quase 20 anos atrás pelo filósofo e historiador, Achille Mbembe, em seu artigo “O que fazer com as estátuas e os monumentos coloniais?”, em que argumenta como imagens como as de monumentos que dominam o espaço público das cidades são expressões do colonialismo que impactam principalmente pessoas marginalizadas como imigrantes de países do terceiro mundo a se manterem em uma posição submissa. Destaco um trecho de seu texto que aponta a questão dos monumentos coloniais:
Sabe-se que, para ser duradoura, toda dominação deve se inscrever não somente sobre os corpos dos sujeitos, mas também deixar marcas sobre o espaço que habitam, bem como traços indeléveis no seu imaginário. (MBEMBE, 2020)
Em meio a isso, em 2020, o presidente francês, Macron, se pronuncia sobre os atos e reconhece o racismo na França, mas afirma veementemente que nenhuma estátua de figuras coloniais controversas seriam retiradas, pois é contra o “apagamento da história” (France 24, 2020). Esse debate reverberou na política francesa em 2020 assim como em outros países e foi impossível ignorá-lo. É um tópico que ainda continua atual e também está presente nos debates anticoloniais brasileiros, onde algumas estátuas também foram alvo de protestos.
Iván Argote e seu trabalho vão de encontro a essas questões e instigam propositalmente uma discussão da população sobre seus monumentos e sobre a história de seu país. Participa das discussões decoloniais através dos seus trabalhos no qual recorrentemente usa meias verdades e brincadeiras/chacotas. Trata esses monumentos como algo passível de discussão e não os aceita como parte inerente da paisagem da cidade. Para o artista, a obra Au revoir, Joseph Gallieni é um vídeo de antecipação para um futuro que realmente seja possível discutir coletivamente sobre nosso passado colonial que ainda marca a paisagem nossas das cidades.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Institut national de la statistique. L'essentiel sur... les immigrés et les étrangers. França, julho de 2023. Disponível em: <https://www.insee.fr/fr/statistiques/3633212>
Musee d’Orsay. À Nos Grands Hommes, Galliéni. Disponível em: <https://anosgrandshommes.musee-orsay.fr/index.php/Detail/objects/5303>
Orange. “Dans um musee”: une statue du général Gallieni vandalisée à Paris. Junho de 2020. Disponível em: <https://actu.orange.fr/videos/france/dans-un-musee-une statue-du-general-gallieni-vandalisee-a-paris-CNT000001qUccU.html> Acesso em 03 de fevereiro
France won’t ‘erase’ history by removing colonial-era statues, Macron says. France 24, 14 de junho de 2020. Disponível em: < https://www.france24.com/en/20200614- macron-vows-that-france-won-t-take-down-statues-or-erase-history> Acesso em 03 de fevereiro
ARGOTE, Ivan. “Au revoir Joseph Gallieni”, 10 min, 2021. Disponível em:< https://vimeo.com/569959593> Acesso em 28 de janeiro de 2024
ARGOTE, Ivan. Página inicial do site de Ivan Argote. Disponível em: <https://ivanargote.com/ > Acesso em 28 de janeiro de 2024.
ARGOTE, Ivan. Au Revoir (Joseph Gallieni, Paris), an anticipation film. Postagem no Instagram. abril de 2021. Disponível em: <https://www.instagram.com/p/CN65ndflq Z/?img_index=1> Acesso em 03 de fevereiro de 2024
MBEMBE, Achille. “O que fazer com as estátuas e os monumentos coloniais?”. Revista Rosa, São Paulo, v. 2, n. 2, novembro de 2020. Disponível em: <https://revistarosa.com/2/o-que-fazer-com-as-estatuas-e-os-monumentos coloniais> Acesso em 28 de janeiro de 2024.
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