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Demonização das práticas antropofágicas dos Tupinambá na arte

  • blogppghauerj
  • 28 de nov.
  • 5 min de leitura

Prisioneiro recebendo o golpe mortal, Americae Tertia Pars. Theodore De Bry, 1596. Gravura, buril sobre papel, 33 x 24,5 cm. Coleção Brasiliana Itaú, Itaú Cultural.
Prisioneiro recebendo o golpe mortal, Americae Tertia Pars. Theodore De Bry, 1596. Gravura, buril sobre papel, 33 x 24,5 cm. Coleção Brasiliana Itaú, Itaú Cultural.

Demonização das práticas antropofágicas dos Tupinambá na arte


Luiza Ramalho

Graduada em História da Arte (UERJ)




No ano de 1500, chegaram as primeiras caravelas portuguesas nas praias brasileiras depois de pouco mais de um mês de viagem. Logo após desembarcarem, os europeus já teriam o seu primeiro contato com os indígenas brasileiros. O encontro marca o início de um grande choque de culturas que iria questionar a moralidade e a crueldade humana na visão dos europeus fortemente cristãos. Esta visão cristã eurocentrada impedia a compreensão por parte deles da cultura ritualística dos povos originários, fazendo com que entrassem em um embate cultural e religioso. Nesse primeiro momento, as gravuras foram fundamentais para ilustrar o que tinham encontrado nesse “Novo Mundo”, mesmo que os artistas nunca o tivessem visto.

As notícias das Américas chegavam à Europa através dos viajantes que iam “explorar” esse território. Hans Staden e Jean de Léry foram duas figuras que vieram ao Brasil nos anos de 1550 e 1556, respectivamente e escreveram seus relatos em dois livros distintos: Duas viagens ao Brasil do alemão Hans Staden e História de uma viagem feita à Terra do Brasil, chamada também de América do missionário protestante Jean de Léry. Ambos os livros encantam a mente do povo europeu de maneira fantasiosa, em especial do editor e gravurista Theodore de Bry, que se pôs a desenvolver sua própria edição sobre as viagens à América. Sua coletânea conta com textos e gravuras da América espanhola e portuguesa, as separando por regiões. Chama de Americae Tertia Pars (América Parte III), a terceira parte do livro em que narra o que hoje conhecemos como o litoral brasileiro, juntando os dois relatos mencionados e os ilustrando com suas próprias gravuras sem nunca ter vindo ao Brasil, seguindo as descrições que estavam nos textos de Staden e Léry.


Fig.1: Ilustração original do livro de Hans Staden
Fig.1: Ilustração original do livro de Hans Staden

Theodore de Bry abre América Parte III com os escritos de Hans Staden, seguindo a ordem cronológica da publicação dos dois livros que vai trazer nesta edição. Staden irá contar sobre suas duas viagens, começando com a primeira, mais breve, mas que já teria um encontro com os indígenas na região de Pernambuco. O autor se utiliza repetidamente do termo “selvagem” para se referir aos indígenas e cria um imaginário hostil antes mesmo de encontrá-los, as gravuras originais do livro provavelmente foram feitas pelo próprio Staden ou a partir de suas direções, as quais Theodore de Bry irá se aproveitar imensamente para ilustrar sua própria edição. Ironicamente, sua primeira viagem encerra abruptamente após serem atacados por um navio francês, quase sem ter contato com os “indígenas selvagens”.

Em sua segunda viagem, Staden é capturado e aprisionado numa aldeia Tupinambá onde ele seria a vítima do ritual antropofágico. A antropofagia praticada pelos Tupinambá envolve o processo de comer carne humana, porém se difere do canibalismo como explica Machado (2020): “A antropofagia é um complexo ritual ameríndio de guerra, que envolve vingança e, como derradeira etapa do processo, a ingestão da carne do inimigo virtuoso. A Antropofagia não é canibalismo, porque é uma prática ritualística. O canibalismo, por sua vez, é a antropofagia por fome.” Staden passou um ano como prisioneiro vivendo entre os Tupinambá, eventualmente fugindo. Nos seus relatos, além do ritual antropofágico e suas inúmeras táticas de sobrevivência e sorte, descreve os outros costumes da aldeia. No capítulo V da segunda parte de seu livro, explica como são construídas as moradias dos Tupinambá, acompanhando uma ilustração (figura 1). Na edição de Theodore De Bry, ele escolhe também ilustrar a aldeia, porém com um detalhe a mais (figura 2).


Fig.2: Ilustração de Theodore De Bry
Fig.2: Ilustração de Theodore De Bry

A cena que acontece no meio da aldeia na ilustração de Theodore De Bry, não está sendo descrita por Hans Staden nesse momento do livro. Entretanto, posteriormente entende-se que está acontecendo a última etapa do ritual antropofágico onde o prisioneiro é acertado com um golpe mortal na cabeça (figura 3). Segundo os relatos do próprio Staden, a antropofagia não é um ritual rotineiro, sequer cotidiano, na verdade é um grande dia, com preparações, festejos e bebidas específicas. Contudo, De Bry faz a escolha de ilustrar diversas cenas corriqueiras ao redor da aldeia como pesca, caça, transporte de água e de lenha. Ao representar cenas comuns da atividade tupinambá juntamente com a cena do golpe finalacontecendo ao meio da gravura, De Bry acaba por ativamente escolher mostrar o povo Tupinambá como violento e canibal, ou seja, que se alimenta de carne humana.


fig 3: Prisioneiro recebendo o golpe mortal, Americae Tertia Pars. Theodore De Bry, 1596. Gravura, buril sobre papel, 33 x 24,5 cm. Coleção Brasiliana Itaú, Itaú Cultural.
fig 3: Prisioneiro recebendo o golpe mortal, Americae Tertia Pars. Theodore De Bry, 1596. Gravura, buril sobre papel, 33 x 24,5 cm. Coleção Brasiliana Itaú, Itaú Cultural.

Os rituais em que se come a carne humana serão interpretados pelos viajantes como uma “missa negra”, um ritual mimético da eucaristia cristã. A celebração da eucaristia dentro da doutrina cristã traz pão e vinho representando o corpo e sangue de Cristo, que em seguida são consumidos pelos fiéis que reconhecem a presença simbólica de Jesus. Em vez de simbolicamente comer o corpo (de Cristo) através do pão e do vinho, iriam o fazer literalmente. Dessa forma, comer um corpo humano seria uma forma de demonstrar uma paródia e um sacrilégio por parte da cultura Tupinambá acerca da cultura cristã. Assim, a repetição do tema da antropofagia nas ilustrações de Theodore De Bry pode levar a acreditar que ele estava a condenar os atos anti-cristãos, aumentando a repercussão da visão demoníaca sobre os povos originários, em que seus rituais teriam sido forjados pelo diabo.

A crença de que o diabo habitava as terras americanas muito difundida era pelos viajantes, vivendo principalmente entre o povo Tupinambá, como narra Jean de Léry (1574, p.116): “Como os tupinambás, embora de um modo muito mais bestial, procuram fazer crer que Deus não existe, nos selvagens encontraram pelo menos a prova da existência do diabo nos seus tormentos ainda neste mundo.”

Assim, “o papel dos colonizadores era levar a civilização aos bárbaros transformando aqueles semi-humanos ou não-humanos em cristãos civilizados. Mais uma vez justificava-se a colonização e a destruição bárbara das culturas indígenas” (AMARAL, 2008, p.5). Com gravuras tão chocantes que representavam os tais costumes como corriqueiros, mostrando a violência indígena e seus rituais que iam contra os ditos da Bíblia, logo, foi possível praticar os atos genocidas e coloniais sem oposições do tal “mundo civilizado”.





Referências:

AMARAL, Marília Perazzo Valadares do. O Conceito de Alteridade Atrelado à Evolução da Representação Social do Índio no Brasil (Séculos XVI, XVII e XIX). 21 f. Universidade Federal de Pernambuco.

DE BRY, Theodore. Americae: Tertia Pars. Frankfurt: [s. n.], 1596. 332 p. v. 3. LÉRY, Jean de. Viagem à Terra do Brasil. São Paulo: Livraria Martins Editora, 1967.

MACHADO, Ricardo de Jesus. Antropofagia. 2020. Elaborada por Antropofagias. Disponível em: https://antropofagias.com.br/antropofagia/. Acesso em: 10/11/2023.

STADEN, Hans. Duas viagens ao Brasil. Porto Alegre: L&PM, 2022.


 
 
 

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